Setembro de 2002 - Ano I - Número 1








 

Por A mais B, a técnica da notícia

Nilson Lage [*]

Resenha

COMASSETTO, Leandro Ramires. As razões do título e do lead: uma abordagem cognitiva da estrutura da notícia, dissertação de mestrado. Florianópolis, UFSC, 2001, 99 páginas.

Quase tudo que se publica no Brasil sobre jornalismo trata de grandes veículos nacionais, redes poderosas que levam seu discurso a grandes concentrações urbanas – as praças de São Paulo capital, São Paulo II (a “Califórnia brasileira”), Rio de Janeiro e, como fonte, ora de notícias, ora de benesses, Brasília, o Distrito Federal. Todos sabem que a mídia, nas outras capitais, está em mãos de oligarquias (como é o caso  da Bahia, de Alagoas ou Maranhão) ou de empreendimentos tradicionalmente associados aos governos locais (no Paraná, por exemplo), eventualmente indignados quando as verbas estaduais não pingam em suas boquinhas sequiosas (no Rio Grande do Sul).

Parece que o Brasil acaba aí. O que resta é público residual – e o paulista ou carioca imagina vilas nordestinas onde o aposentado que recebe um ou meio salário mínimo é o grande freguês das lojas; ou talvez o recanto de montanha ou praia em que passou ano retrasado as férias, entre piscinas, restaurantes falsamente alemães (ou italianos, poloneses, chineses...), quartos de hotel onde se restaura a libido e “o verde” que, segundo a filosofia natureba, elimina o estresse e limpa os pulmões da habitual mistura de CO2, ozônio e cheiros não identificados.

Leandro Ramires Comassetto é um cidadão do Brasil menos conhecido. Não mora em florestas, areais ou chapadões. É jornalista, professor, cidadão urbano, convive com cidades de porte médio, modernas e com pessoas de padrão de vida confortável numa das regiões mais ricas do país, que todo cidadão homenageia quando almoça frango, peru, salsicha ou descongela a pizza. O Oeste de Santa Catarina e a região do Contestado (onde, há menos de um século, colonos rebelaram-se na revolta dos Mückers, tão parecida com a guerra de Canudos) são, hoje, territórios onde a prosperidade só não é maior porque a exportação de produtos agro-industriais enfrenta o subsídio aos concorrentes norte-americanos, os juros internos, no Brasil, são boçalmente altos e o poder aquisitivo do povo caminha em curva decrescente.

O que motiva a dissertação de Leandro é a pobreza estilística, a falta de qualidade dos jornais da região, em contraste com a tecnologia de ponta que antecipa, com precisão de cinco gramas para mais ou menos, quanto pesará um frango ao fim de x meses. Mais do que isso: a necessidade de demonstrar a repórteres e redatores improvisados, sem nenhuma escolaridade específica, que a difusão de informações no mundo contemporâneo exige padrões técnicos que não decorrem da moda, como a escolha de estilos de vestuário, mas se apóiam em usos tradicionais que, por sua vez, correspondem a mecanismos da cognição humana.

Desde sempre, no contato entre pessoas, o evento singular relevante precede antecedentes, circunstâncias e detalhes. Se uma pessoa vê (ou vê, ou sente, ou cheira) algo importante ou inusitado (digamos, uma conversa telefônica do ministro da economia com Fernandinho Beira Mar), informará o acontecimento a um interlocutor contando exatamente isso: “Eu ouvi  uma conversa pelo telefone do  Ministro Pangloss com Fernandinho Beira Mar”. É improvável, inadequado, espantoso, atrairá para o falante a pecha eterna de ser chato, um relato assim: “Eu estava ao telefone falando com a Mariazinha sobre o bolo que a gente pretende fazer para o aniversário do João – aquele todo confeitado com açúcar colorido –, quando uma linha cruzada atrapalhou a conversa. Mas era um papo tão interessante que ficamos calados, só ouvindo o que diziam. Falavam sobre grandes quantias, viagens, assassinatos, uma porção de coisas. Você não imagina qual a nossa surpresa quando percebemos quem eram os interlocutores. Tratava-se, ora veja, do Ministro Pangloss e daquele traficante que está preso não sem bem onde, qual é o nome? Ah, sim, o Fernandinho Beira Mar...”

Pois bem. Se pegarmos a frase “eu ouvi uma conversa...” . suprimirmos o contexto (o “eu”), acrescentarmos as marcas necessárias de tempo, espaço e modo, teremos, no formato normal da mensagem, transposta para um veículo público, algo como “Uma conversa entre o Ministro Pangloss e Fernandinho Beira Mar foi interceptada ontem ao meio-dia numa linha cruzada em Goiânia, Goiás” – que é, afinal, um lead. Trata-se de uma forma que não decorre nem do épico, da lírica ou da dialética, mas de algo bem mais primário: o aviso de perigo diante da fera, o balbucio do soldado que correu de Maratona a Atenas, o grito “terra à vista” do vigia no alto do grande mastro da frota cabralina, em frente à costa baiana.

A motivação de Leandro o conduziu a um levantamento singular dos princípios teóricos que subjazem a estrutura da notícia. Partindo dos conceitos de macroestrutura e superestrutura, tal como propostos por Van Dijk e Kintsch1, ele busca – e consegue – dar conta do conteúdo semântico global e da forma como ele se ajusta ao texto, com ênfase nos títulos e leads, considerados categorias essenciais do esquema da notícia.

O princípio que rege a abordagem cognitiva do compreensão do discurso é a natureza ativa da recepção: o fato de que a percepção é processo complexo, que inclui a avaliação das intenções do emissor, dos contextos do enunciado e da enunciação, o recurso aos conhecimentos não apenas da memória léxica, mas, principalmente, da memória enciclopédica, de modo a construir uma interpretação da mensagem, pessoal e, de certa forma, única.

Mal entram em  contato com o primeiro frame de uma notícia, os receptores (leitores, ouvintes, espectadores) tentam construir um modelo de situação, ativando a lembrança de modelos anteriores sobre situações similares. A memória episódica e a memória semântica, ambas incluídas na memória de longo prazo, contribuem, assim, todo o tempo, para o entendimento do discurso.

A estimativa sobre o conteúdo da informação inclui alguma previsão da superestrutura, ou seja, da estrutura global que caracteriza o tipo de texto, segundo a qual se direcionam os esquemas semânticos – lê-se um texto científico diferentemente de uma peça de teatro. A prioridade do receptor é derivar o quanto antes um sentido global para o enunciado – e ele o faz a partir da microestrutura de proposições que vão sendo processadas na memória de curto prazo, de modo que, afinal, não se lembrará das palavras ou frases, mas será certamente capaz de reconstruir, a partir de sua visão peculiar, o conteúdo do discurso percebido.

A macroestrutura é a informação semântica que fornece unidade ao discurso. As coerências microestruturais podem ser preservadas em bestialógicos. A macroestrutura, não; resulta da conexão das proposições em torno de uma questão central ou tópico. É o que acontece no poema de Mário de Andrade, citado por Comasseto, em que as partes aparentemente não se reportam umas às outras, mas a consistência é preservada:

Num automóvel de luxo,

Sessenta vezes por mês

Bem barbeado, bom charuto,

Rei dos reis....

Diferente de outros gêneros de discurso, que se reportam a situações rituais específicas (a exaltação de sentimentos, o convencimento de outros, a narrativa dramática etc.), a notícia apresenta lógica própria, baseada na relevância, tema exaustivamente estudado por Sperber e Wilson2. Em suma,

a organização estrutural da notícia e os princípios que a norteiam não autônomos nem arbitrários. Na verdade, são condicionados por várias imposições de produção e uso, em respeito a condições sociais, culturais e cognitivas. Por um lado, os jornalistas deles se utilizam para facilitar a produção das notícias. Por outro, os leitores aprenderam, pelo hábito de leitura de jornais, a encontrar no esquema os sinais de que precisam para uma cognição rápida e eficiente do relato.

Quem não acredita nisso passará a acreditar ao ler a dissertação de Comasseto, particularmente a aplicação crítica dos princípios cognitivos a textos que ignoram por inteiro a técnica jornalística, em alguns dos 50 jornais de 50 cidades da área de 34.600 km2 da região do Contestado. Não se trata de algo que mereça ser discutido: é uma constatação de que se deve partir para qualquer estudo do gênero notícia – primeiro, mas não único, dentre os gêneros jornalísticos.



[*] Jornalista, Professor titular, Universidade Federal de Santa Catarina. Orientou a pesquisa de Comassetto.

1 Principalmente em Strategies of discourse comprehension. Nova York, Academic Press, 1983. Também em VAN DIJK, Teun. Moacrostructures, Hillsdale, Nova Jerseuy, Rrlbaum, 1980.

2 SPERBER, Dan & WILSON, Deirdre. Relevance: communication and cognition. Oxford, Blackwell, 1996, 2ª edição.